segunda-feira, abril 22, 2024

Simplesmente

 

Simplesmente palavras nos meandros dos teus olhos

Simplesmente contornos de carícias à solta pelo vento

 

Nem mais nem menos que lábios voláteis

beijando os teus cabelos

Nem mais nem menos que dedos transparentes

na pele do teu rosto

 

Não sonhes num minuto escapar do que procuras

Nem sonhes que caminhos no futuro não te farão chorar

Não digas não demandes as origens do planeta

Nem pretendas com regras e livros sinuosos

dizer do que não sabes

Não sabes o segundo na fracção de tempo imediato

Nem sabes que dicionário consultar para dizeres

 

Que tudo o que me digas não é nada

E chega rir sorrir trocar coisas tão vãs como trocamos

Porque nos meandros dos teus olhos cruzam-se os meus olhos

quinta-feira, março 28, 2024

Não deixeis um grande amor

 

Aos poucos apercebi-me do modo

desolado incerto quase eventual

com que morava em minha casa

 

assim ele habitou cidades

desprovidas

ou os portos levantinos a que

se ligava apenas por saber

que nada ali o esperava

 

assim se reteve nos campos

dos ciganos sem nunca conseguir

ser um deles:

nas suas rixas insanas

nas danças de navalhas

na arte de domar a dor

chegou a ser o melhor

mas era ainda a criança perdida

que protesta inocência

dentro do escuro

 

não será por muito tempo

assim eu pensava

e pelas falésias já a solidão

dele vinha

 

não será por muito tempo

assim eu pensava

mas ele sorria e uma a uma

as evidências negava

 

por isso vos digo

não deixeis o vosso grande amor

refém dos mal-entendidos

do mundo

 

José Tolentino Mendonça in Longe Não Sabia


Foto de João Coutinho

P.S. Para ler mais sobre língua portuguesa, visite o meu blogue profissional FAZT.


quinta-feira, março 21, 2024

Sinestesia

 


com asas de gaivota

fugimos lépidos delicados

da gravidade de isaac

 

na mesa da cozinha

estava um raio de sol

maças vermelhas

uma tarde branca

 

o cheiro a canela pelo ar

embrulhava-se em paixão

com o piano

que voou da sala

foi há muito tempo


um dia lento e aromático

na época das cerejas e dos sonhos.


Foto de João Coutinho


P.S. Para ler outros textos da minha autoria sobre Língua, visite o meu blogue FAZT

terça-feira, janeiro 02, 2024

Síndroma do olho eletrónico

É impossível fazer uma reportagem da nossa vida e vivê-la ao mesmo tempo.

Tirei uns dias na última semana do ano para relaxar. Fiquei longe das redes sociais a maior parte do tempo.

 De qualquer forma, tirei estes dias para estar presente na minha vida, livre de qualquer pressão para escrever.

Queria apenas viver o momento e guardar boas recordações na minha memória.

 Esta fotografia é uma das poucas que tirei.

 Adoro esta praia e gostei deste sinal de boas-vindas. Quando o vi ali, parecia estar a dar as boas-vindas ao novo ano. A uma nova perspetiva. Ou a algo novo e cheio de esperança.

 Um dia, estava a visitar o Castelo de Praga, e alguém do grupo estava sempre a parar para tirar fotografias. Esta situação obrigava o guia a interromper constantemente as explicações. A pessoa estava a viajar sozinha e todos nós sentimos que fazer aquela reportagem era importante para ela

Começámos então um debate sobre esta espécie de obsessão por tirar fotografias.

O guia referiu um texto de Umberto Eco sobre o assunto.

O artigo de Eco fala da "síndrome do olho eletrónico". Define-a como o desejo de estar presente com um olho mecânico em vez de um cérebro.

O ensaio reflete sobre a compulsão de fotografar e filmar tudo e como isso nos afasta de viver efetivamente o momento.

Eco pensa que as pessoas estão demasiado concentradas em guardar memórias nos seus telemóveis e estão a perder a capacidade de as apreciar e guardar nas suas mentes.

Por vezes, é essencial manter um registo do momento.

Normalmente, é mais importante viver.

Feliz 2024.


P.S. Chronicles of a liquid society by Umberto Eco